sábado, 28 de novembro de 2015

Da Poesia na cara



Às vezes a Poesia, às vezes nós.
Às vezes o tempo do outro lado do vidro,
às vezes a pedra e a cruz e a benção,
às vezes o amor mas sempre Poesia.


Às vezes a morte a dormir ao nosso lado
às vezes a dor deitada de barriga para cima no sofá da sala
às vezes o nosso corpo sem pés e
sem mãos e sem braços:
às vezes a cave: o quarto escuro,
mas sempre a Poesia.

Às vezes o medo debaixo da mesa, escondido de nós nas escadas
no escuro,
às vezes o abraço e o beijo;
tantas vezes os ossos no corpo do desmaio
mas sempre Poesia.

Às vezes o ascético morrer de solidão
às vezes a toalha no corpo depois do banho
a limpar-nos do pecado;
às vezes os braços dos outros a segurarem-nos a cabeça em fortaleza
 para ela não cair e partir
(como quem pode segurar-nos a cabeça para ela não cair  e partir)
às vezes os dentes brancos no espelho da casa de banho
mas sempre a Poesia.

Às o que tínhamos que era infinito e
às vezes quando o infinito era medo e bosque e unhas na boca;
às vezes as pernas abertas, às vezes as pernas fechadas
às vezes o cabelo preso no encosto.
Às vezes o pau, a fera, o tronco
às vezes o tempo e às vezes nós.
Mas sempre a Poesia.

Às vezes os olhos e os pés frios numa cama longa de gente,
às vezes eu no espelho a dizer-me adeus com a mão toda
(às vezes eu não tenho a mão toda no espelho)
e às vezes o mar.

Às vezes o peito sem respirar
(às vezes o peito não respira)
às vezes o norte e o sul na cara,
às vezes o este e o oeste.

Às vezes o tamanho do corpo,
mas sempre, sempre, a Poesia.




quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Da espera dos outros


Para o meu irmão L. que me ensina coisas bonitas




Um dia aprendemos a esperar. Ficamos à porta de uma casa e esperamos. Sabemos que a pessoa que queremos está lá dentro e ouviu-nos tocar.
Tocamos: ela sabe-nos ali.
Pode fingir e não querer abrir, mas sabe que estamos do outro lado da porta: com a cabeça, com os braços, com as pernas que nos sobram de um amor. Esperamos.
 
Esperamos porque o amor sempre nos deixa com o nosso corpo.
 Esperamos assim que alguém abra a porta. Que a pessoa que está do outro lado nos queira e venha; esperamos que ela  nos deixe entrar porque é só isso que queremos afinal; não pedimos mais nada, só queremos entrar.

Não voltamos a tocar porque quem espera não insiste , mas encostamos a cabeça à porta. Continuamos. Esperamos. 


Podemos até sentar-nos no chão à espera.
Esperamos fora do imediato porque aprendemos que as pessoas têm tempo dentro delas, desajustado dos nossos relógios de pulso, do nosso.
Espera-se que a porta abra, depois espera-se que ela abra o suficiente para vermos a pessoa que queremos; esperamos um pouco mais para que a sua abertura total permita a entrada do nosso corpo e nos inclua.

 Esperamos, numa última etapa, finalmente, que a porta  se feche atrás de nós:  gostamos do barulho da porta que se fecha. Por trás.

Mas esperamos.
E a espera é grandiosa.




terça-feira, 10 de novembro de 2015

Do som e da fúria



Nunca uma música falou tão alto.
Nunca uma melodia disse tanto.



Aqui.

                                                Van Gogh - "Os comedores de batatas"






sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A casa



Para J. com todo o meu amor



E depois chegas tu
com anjos nas costas
e olhos que constroem janelas e portas na
casa onde antes vivia o vento.


Chegas sem mãos
com o rito consolador
e levas a penumbra para trazer o Estio,
e com ele o quente.


Chegas sem olhos porque não precisas de ver
o que conheces e sabes existir.


Chegas sem nariz e sem rosto
porque tudo é eterno e teu.



Com as mil línguas que falas
espantas os ratos e as cobras
e a casa é toda ela habitável e nossa,
para os filhos que teremos do corpo e
para os filhos que vierem depois desses,
os netos dos mortos.


E ali, naquela casa,  toda a eternidade é amor.
Ali,  toda a eternidade é desejo.



segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Tradução de poemas de Inês Leitão por Xavier Frias





NO DIA EM QUE HATERLY MORREU E OUTROS POEMAS DE INÊS LEITÃO

NO DIA EM QUE HATERLY MORREU

Deixámos de poder dizer amor com os dedos
porque tudo o que tinhamos de tacto
virou pó,
manta velha, 
rol de velhas falácias ditas por bocas sujas de velho engodo,
e os dedos deixaram de saber dizer.

Deixámos de poder dizer amor com os lábios
porque decepados,
o rosto foi invadido pelo líquido vermelho 
que alimenta o corpo e lhe faz as brasas.

Deixámos de poder dizer amor com os olhos
porque o único de nós que via,
deixou de ver, e
o que era antes corpo é agora quadro,
o que era antes luz é agora gelo
o que era antes cor é agora dor.

EN EL DÍA EN QUE MURIÓ HATERLY

Dejamos de poder decir amor con los dedos
porque todo lo que teníamos por tacto
se volvió polvo,
manta vieja,
lista de antiguas falacias dichas por sucias bocas de viejo cebo
y los dedos dejaron de saber decir.

Dejamos de poder decir amor con los labios
porque amputados,
el rostro fue invadido por el líquido rojo
que alimenta el cuerpo y lo abrasa.

Dejamos de poder decir amor con los ojos
porque lo único de nosotros que veía
dejó de ver y
lo que antes era cuerpo ahora es cuadro
lo que antes era luz ahora es hielo
lo que antes era color ahora es dolor.



DA DOR

Matamos as saudades. 
Não as eliminamos, não as apagamos, não as tapamos, nem as sabemos reduzir até à sua inexistência
 são elas que  nos reduzem a nós

resta-nos matá-las. Matar. Pegar em armas e matar.
Não sabemos aligeirá-las, não existe pomada nem comprimido que nos liberte: o ideal é matar a saudade toda logo, não permitir que ela respire (tapar-lhe a boca e apertar-lhe o nariz),
nem permitir que ela nos toque: afogá-la ou dar-lhe com uma pá na cabeça para ela cair desfeita no chão e desaparecer-nos  dos olhos imediatamente

(a saudade começa-nos nos olhos)

 A pá, o crânio desfeito no chão e a ausência rápida de saudade
– sim, a saudade tem um crânio; tem um crânio porque às vezes a saudade é pessoa; e quando é pessoa dói mais e precisamos que ela morra mais rápido ainda.

DEL DOLOR

Matamos las saudades.
No las eliminamos, no las borramos, no las tapamos, ni sabemos reducirlas hasta su inexistencia
– son ellas las que nos reducen a nosotros

solo nos queda matarlas. Matar. Tomar las armas y matar.
No sabemos aligerarlas, no existe pomada ni compromido que nos libre: lo ideal es matar toda la saudade enseguida, no permitir que respire (taparle la boca y apretarle la nariz), ni permitir que ella nos toque: ahogarla o darle con una pala en la cabeza para que se caiga al suelo deshecha y desaparezca ya de nuestros ojos.

(la saudade empieza en nuestros ojos)

Vaya, el cráneo aplastado en el suelo y la ausencia rápida de saudade
– sí, la saudade tiene cráneo; tiene cráneo porque a veces la saudade es persona; y cuando es persona duele más y necesitamos que se muera aún más rápido.



DA CASA DO CORPO

Devia ter a coragem para contar-te que hoje sou eu. Não és tu, nem o teu corpo numa Lisboa feita de Inverno como nós naqueles dias: hoje é o meu corpo e o que eu tenho cá dentro
(passou um ano)

Tento ter a força de levar o que é meu, para um caminho novo que surgirá quando abrir os olhos
 sim, os meus olhos vão abrir e nunca mais me vou lembrar
os olhos a abrir dentro de água, o líquido e o que ele protege

corpo a mudar,
 a mexer-se,
 a crescer por dentro até ao dia da aniquilação; e um sinal da cruz que sai pela indicação do polegar,
a nascer da testa ao queixo,
a cruzar a cara quente em sinal de perdão.


DE LA CASA DEL CUERPO

Debía tener el valor de contarte que hoy soy yo. No eres tú, ni tu cuerpo
en una Lisboa hecha de invierno como nosotros en aquellos días: hoy es mi cuerpo
lo que llevo aquí dentro
(ha pasado un año)

Intento tener fuerzas para llevar lo que es mío, para un camino nuevo que surgirá cuando abra los ojos
– sí, mi ojos se abrirán y nunca más recordaré
abrir los ojos dentro del agua, el líquido y lo que ella protege

El cuerpo cambiando
meciéndose
creciendo por dentro hasta el día de la aniquilación; es una señal de la cruz que sale por el gesto del pulgar
naciendo de la frente hasta la mandíbula,
cruzando la cara caliente en señal de perdón


http://lastura.blogspot.pt/2015/11/no-dia-em-que-haterly-morreu-e-outros.html?spref=fb
© Texto: Inês Leitão
© Tradução: Xavier Frias Conde

Adeus, Ophelia

  Querida Ophelia,  a tua morte foi a coisa mais difícil que vivi até hoje. Ter ficado contigo até ao último minuto dá-me um certo alento es...