segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Cilício (I)





Há dias em que não sabemos sair de casa ou em que a casa não sabe sair de nós.
Estamos a comer uma tosta mista com carne e milho e pão alentejano na Ericeira. Há dias em que não consigo sair da cama.  Temos de beber dois ice teas para a tosta escorregar por dentro, para  conseguir passar  da boca até ao estômago.
Em dias destes as pernas saem-te da cama. As pernas fazem-te levantar e caminhar até à casa de banho quando essa era a tua última vontade. Costumava deixar restos de tosta nos dentes de trás para puder ficar com alguma coisa dessa tarde: havia tempo enquanto a massa do pão não se desprendesse da gengiva,o tempo da estrada da Ericeira até minha casa. E quando as tuas pernas te fazem voltar ao quarto, sentas-te novamente na cama, os teus braços vestem-te com o amor que precisas para despertar,

as tuas mãos lavam-te a cara,
e os teus dedos indicadores,  molhados de saliva, alinham-te as sobrancelhas frente ao espelho
como a tua ama fazia quando eras pequena e ela te lavava; para depois te mandar  levantar vestindo-te uma camisola interior branca num dia frio de Inverno.

As tuas mãos continuam o seu trabalho de mãe e apertam os atacadores da roupa dos teus pés.
A tosta vai na tua boca dentro do carro e vais aguentar o pão nos dentes tempo suficiente para não chorar. As mãos apertam com um elástico o teu cabelo sujo e abrem a torneira da água quente. E esfregam-te, esfregam-te tanto.
Esfregam-te porque desde que o carro saiu não restou mais nada. As tuas mãos não têm pena de ti. Gostam de ti e do teu corpo. Cuidam. É que há o teu corpo. E as tuas mãos pegam na toalha e secam-te as pernas, os pés, seios magros sem maternidade e limpam-te os olhos.
E só assim tu percebes que não estás só: porque te tens e porque é teu o teu corpo.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Biografia Inês Leitão


INÊS LEITÃO nasceu a 1 de Julho de 1981 em Lisboa. É licenciada em Estudos Anglo-
Americanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduada em
Assessoria Empresarial pelo ISLA.
Teve a sua primeira publicação na revista “Quase” em 2001. Seguiram-se colaborações em “Os Fazedores de Letras” durante o ano de 2003. Em Maio de 2004 cria na blogosfera bocadosdecarnepelasparedesdoquarto (www.bocadosdecarne.blogspot.com) e em 2005 inicia a sua participação no blogue Prazeres Minúsculos (www.prazeresminusculos.blogspot.com).
Participa em 2006 na Revista “Sítio” e lança o seu 1º livro em 2007 “Quarto Escuro”(Ed. Livrododia). É responsável pelo projecto “6 Autores com o Plano Nacional de Leitura” (Abril 2008) e em Julho de 2008 é uma das vencedoras da iniciativa dos Artistas Unidos “Isto não é um concurso” com a peça “A última história de Werther”, encenada por João Meireles. Em Setembro do mesmo ano publica a sua primeira história infantil “Pitopeca em África: a história de uma Missão em Maputo” (Ed. Paulinas).
Foi eleita pela revista ELLE Portugal como um dos 20 novos Talentos para o futuro na dramaturgia portuguesa e em 2010 escreve exclusivamente para o blogue Desfibrilhador (www.desfibrilhador.blogspot.com).
Em 2012 é convidada a participar com crónicas semanais no programa de rádio “Manual de Instruções” de Fernanda Almeida (RDP África).

É a autora do “Manifesto pela saída de emergência” e “Manifesto pela utilização de transportes públicos”, manifestos encenados no projecto “Coro das Vontades” (Teatro Maria Matos, Julho 2012).
Os dois Manifestos foram musicados e compilados no segundo CD do pianista português Tiago Sousa.
É autora do documentário “As Mulheres de Deus” (RTP2, 2012), obra baseada na vida de quatro irmãs hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e do seu trabalho com doentes mentais na Casa de Saúde da Idanha, em Sintra. É também autora do guião e da ideia original do documentário “A Vida de Rafi” (documentário sobre a vida de uma writer/rapper portuguesa na cidade do Porto).
Em Março de 2013 cria a sua primeira instalação: “O Corpo” (instalação baseada na diálogo entre o corpo e a palavra escrita onde cada espectador é convidado a escrever sobre um corpo nu). Em janeiro de 2014 publica o seu terceiro livro “Se o meu corpo fosse um homem” (Ed. Chiado editora). Em Fevereiro de 2014 entrega em Roma, nas mãos do Papa Francisco, uma cópia do seu último documentário “O Meu bairro” (RTP2, 2014) obra que aborda a vida dos missionários e missionárias da Consolata no bairro social do Zambujal. Em Dezembro do mesmo ano, escreve o guião do documentário “O Padre das Prisões” (RTP2, 2016), trabalho documental sobre a vida do Padre João Gonçalves, o Padre das prisões portuguesas. Em junho do mesmo ano, a “Boutique de Cultura” estreia a sua primeira peça de género – “A Mãe”.
No mesmo mês é apresentado, em Aveiro, o livro “O Padre das Prisões" (ed. Caritas).
Em 2017 assina a ideia original e o guião do documentário "Este é o meu corpo", obra que aborda a mutilação genital em Portugal e em 2020 assina a realização da obra  "Ninguém como nós conhece o sol", documentário sobre a vida e obra do poeta bracarense, Sebastião Alba.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O Poema Eterno ou a Palavra Muda


 
 
Há um poema novo a nascer-me debaixo de língua
à laia de árvore que rasga a Terra:
o poema que quer sair.

A palavra muda arde presa à boca
ao que resta dos dentes, da saliva
(a saliva é a água só da boca, exclusivamente da boca, eternamente da boca):
o poema que quer sair.

A palavra muda aflige o corpo,
como dor das contrações de parto
O corpo pára, grita, regela e coça-se:
mas o poema não vem.

O poema como fissura,
o poema como racha vermelha entre as pernas,
o poema como corte
e mágoa e dor.
(todo o poema é dor).

Todo o poema é dor e corpo e boca e ranger de dentes.
Todo o poema é pecado original, sanguinário, mortal.



Não sei o que será de nós
quando o porvir se cumprir
e o cunho da chaga do tempo for marcado
na pele que fervilha
pelo poema que nasceu.




Adeus, Ophelia

  Querida Ophelia,  a tua morte foi a coisa mais difícil que vivi até hoje. Ter ficado contigo até ao último minuto dá-me um certo alento es...