terça-feira, 15 de maio de 2012

Remissão dos pecados





O espelho.
Estamos a ver-nos ao espelho. Nele somos nus e felizes. Há qualquer coisa no nosso corpo que fala e diz coisas às nossas cabeças. Quando nos deitamos assim, aninhados, como cães da rua ou como pessoas felizes que fazem coisas com o corpo. Nós sabemos fazer coisas com o nosso corpo. E para fazermos coisas com o nosso corpo começamos por olhar-nos nos olhos. Olhamos para dentro um do outro. Nos olhos. Fixamente. Tudo começa nos teus olhos. E depois o que quer que comece nos teus olhos vem para os meus, com força. São os teus olhos. E os meus.
São eles que, como mestres, nos mandam fazer coisas com o corpo. Somos hipnotizados. Obedecemos. Continuamos a ver-nos ao espelho. Mas só depois. Continuamos a ver-nos ao espelho. Nele somos nus e felizes e eternos. No espelho. Ali.
O espelho diz-nos corpo, não nos diz cabeça nem coração -apesar deles existirem debaixo da pele - diz-nos corpo. Tão-só corpo.
O espelho. É nele. Estamos a ver-nos ao espelho.
Nele nus. Nele felizes.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

Da palavra do corpo


Não devia ter falado com o tecto do teu quarto hoje de madrugada.

Não devia ter falado com o tecto do teu quarto hoje de madrugada. Não devia ter falado com o tecto do teu quarto sem tu saberes, à revelia.Os teus olhos fechados, o desenho do teu rosto na noite. Quando o nosso corpo dorme é como se fôssemos mortos com o coração a bater. O teu coração batia nos meus olhos abertos, não batia nos meus ouvidos. O teu coração vivo. O tecto do teu quarto vivo. Nós nus numa plataforma de entendimento que a magia estuda e quer compreender. Nós nus de vivos com o coração a bater. E o teu candeeiro a olhar para nós deitados. Devias saber que o teu candeeiro é invertido. Eu nunca tinha visto um candeeiro invertido. Eu nunca tinha visto um candeeiro como o teu.

No telemóvel um relógio.
O relógio, o telemóvel, os dois programado para me dizerem 04:08. E tu. Tu a seres o desenho das tuas pestanas, das tuas sobrancelhas. Tu a seres o teu corpo e a tua nudez. E a tua pele.
A nossa cama não é uma cama. Nós nunca tivemos uma cama. Tivemos chão. E espaço. E corpo. E tempo. Tivemos corpo e tempo a todas as horas da noite. Chão. Espaço. Corpo. Tempo.  O teu corpo em cima do meu. Como se.
Como se o mundo fosse acabar amanhã.
O tecto do teu quarto tem um rosácea que não é uma rosácea. São oito jarros com ramagens. Oito. Contei-os. Contei-os várias vezes para não me enganar. Não me queria enganar. Queria saber.
O teu candeeiro é invertido. Eu nunca tinha visto um candeeiro invertido. Eu nunca tinha visto um candeeiro como.
O teu corpo no chão é um grito de tempo nos meus ouvidos. Um grito.
Não devia ter falado com o tecto do teu quarto hoje de madrugada. Não devia ter falado.

Adeus, Ophelia

  Querida Ophelia,  a tua morte foi a coisa mais difícil que vivi até hoje. Ter ficado contigo até ao último minuto dá-me um certo alento es...