domingo, 26 de fevereiro de 2012

A nossa poesia

A nossa poesia não tem espinhas no peixe nem cabelos na boca: a nossa poesia é a poesia da verdade.
A nossa poesia não se compadece com a dor nem com o acrilíco, porque a nossa poesia é feita do luto desenvergonhado e do amor que faz os dentes ranger.
A nossa poesia não desaba com obstáculos, a nossa poesia é visionária e sabe o que o futuro diz de nós quando se esconde debaixo da nossa cama para nos ver melhor
(a nossa poesia sabe que nos observam numa base diária)

A nossa poesia é a poesia do nariz colado e a dos olhos fechados: a nossa poesia molha o pão com manteiga no galão quente de manhã ao pequeno-almoço.

A nossa poesia é desavergonhada, anda nua pela casa e tem medo; e diz a toda a gente para sair da frente quando passamos: a nossa poesia é tirana, tem seios perfeitos e às vezes toma comprimidos para dormir quando os nossos olhos observam um tecto demasiado escuro para ser tudo de verdade.

A nossa poesia gosta de nos afogar na banheira até nos privar de respiração, e suporta o nosso corpo imediatamente até à superficie só para nos lembrar que estamos vivos.

A nossa poesia põe-nos a mesa de manhã e compra bolas de berlim mal cozidas
(nossa poesia é uma bola de berlim da praia das Maçãs quando tínhamos 5 anos)

A nossa poesia aconchega-nos à noite porque a nossa poesia não é a poesia da academia, nem dos sonetos, nem das elégias:
a nossa poesia é a poesia da nudez, é a poesia do amor ardente,
que nos desfaz os dentes e nos deixa doentes.










terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Ouvidos em flor

Eu não queria que ninguém se aproximasse de mim no comboio, que ninguém me tocasse, que ninguém me mexesse na saia. Não, certificar-me que não há ninguém em pé atrás de mim, ninguém em pé à minha frente. O comboio é um sítio pequeno e apertado onde as pessoas dançam agarradas ao tecto
- não, eu não queria estar agarrada a ninguém, só ao tecto

 sempre admirei a firmeza calma dos tectos brancos em cima de mim
- só o tecto, sem tocar nada

enquanto o comboio nos faz dançar
-só ele


Quando tenho medo o meu nariz sangra. Eu não gosto de sangue. Eu não danço agarrada aos outros enquanto o comboio anda para o meu nariz não sangrar mais.
Só o tecto. Eu e ele.O nariz a pingar pequenas gotas quentes: o sangue a surgir em motivos de flor na minha saia nova. Curtos desenhos a pintarem a minha saia, perto da pele.
Eu nunca tinha visto tanto sangue junto na mesma saia.
Eu nunca tinha visto o mar.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

As pernas afastadas para ninguém entrar









O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia. O rato nunca roeu a parede.
(ou Carta de um homem mal amado)















Sou um homem, parede. Sou um homem nu, deitado sozinho numa cama, a encostar-te o meu pénis frio, acordado de uma noite que acontece todos os dias dentro do meu corpo. O meu pénis erecto sou eu a querer toque, parede limpa e branca, um simples toque que me faça armar o desejo e conseguir prazer. Quero desmaiar contigo aqui nu, porque o amor tudo pode e eu quero ser teu esta noite, como seria de uma mulher de carne e osso
(as mulheres de carne e osso não existem como tu, parede branca, por escrever)

queria entrar em ti e ser-te, enquanto pela casa milhares de páginas soltas e textos roubados se deitam pelo  chão: milhares e milhares de folhas fotocopiadas pelo chão a dizerem silêncio e medo, como se o vidro das janelas fosse demasiado espesso para haver vida para além do meu pénis erecto, para lá dos papéis no chão.

Ao nosso lado, milhares e milhares de papéis mortos, feridos e amputados pela casa, pelo quarto,
  na pequena despensa à direita da cozinha
(houve uma Grande Guerra no meu sexo que fez milhares de desaparecidos)

milhares de papéis: papéis rasgados e violados pela leitura dos olhos atentos e ferozes que me cresceram na cara, que sobreviveram ao tactear de unhas grossas imperturbáveis
(eu sou os meus olhos, o meu nariz, a minha boca e as minhas orelhas: o meu pénis erecto cheio de vontade de te ter, parede por abrir)

todos os papéis do chão a falar ao mesmo tempo;
 vozes baixas, masculinas e femininas a mostrarem-se nuas como eu aqui deitado frente a ti, parede calada, parede azul 
São 01:47 e eu ainda não 

(o meu pénis e a minha mão)

milhares e milhares de papéis a cheirar a árvores mortas e a arranjos de impressora: papéis a chorarem por mostrarem os seios e o sexo branco enquanto as palavras vão sendo ditas

o corpo surge nu na folha enquanto 

o meu corpo solitário e desfeito ao teu lado, parede, depois de me limpar. Às vezes olho-te nos olhos à espera de ver tudo, de sentir todas as coisas do mundo, mas nada surge para além da minha nudez de vício, numa parede branca e cega.


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O poema que eu não sou

Tenho costas de poema
unhas de poema
 dentes de poema.

Tenho cabelos de poema
 útero de poema
 ancas de poema.

Tenho queixo de poema
 pele de poema
vagina de poema.

Tenho dedos de poema
orelhas,
boca
e nariz de poema.

Tenho fluídos corporais de poema
odor de poema
cabeça de poema.

Tenho olhos dilatados de poema
narinas de poema
joelhos, ossos
e costelas de poema.

Tenho cara de poema
pestanas de poema,
ausência de pêlos de poema.

Tenho febre de poema
doença de poema
dor de braços de poema.

Tenho medo de poema
solidão de poema
crostas e nódoas negras de poema.

E tenho audácia de poema
coragem de poema
amor de poema.


Adeus, Ophelia

  Querida Ophelia,  a tua morte foi a coisa mais difícil que vivi até hoje. Ter ficado contigo até ao último minuto dá-me um certo alento es...