terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Cartas a R.

Lourenço Marques, 5 de Janeiro de 1969


Querido R.

As tuas cartas ainda me fazem rir.
Nunca conseguirei aceitar que um corpo seja compreendido como uma oportunidade. Um corpo a dormir comigo nunca foi uma oportunidade: para mim, fenómenos dessa natureza são analisados criteriosamente sob a semelhança de um atropelamento grave.
 Tenho a nítida impressão que todos os meus relacionamentos com homens foram acidentes de viação violentos que me amputaram membros ou – tão estranhamente - me acrescentaram órgãos ao corpo, Tenho mais rins, mais fígados, mais tripas do que qualquer outra pessoa que conheças.
Corpos deitados na minha cama sempre me fizeram sentir mais sozinha: e eu sou sozinha como nunca imaginaste que uma mulher podia ser. Sou envergonhadamente sozinha. Tanto, que me enterneço de compaixão pelos dedos dos meus pés ou pelos pêlos que me crescem a medo, lentos de medo.
Às vezes tenho vontade de pegar em mim ao colo e levar o meu corpo para longe: uma oportunidade nunca comportará o respeito e o amor suficientes para mim e para o meu corpo.

 Eu não tomo bem conta do meu corpo.
No fundo, recuso-me.

Talvez por isso, inteligentemente, a natureza me tenha feito uma mulher estéril: nunca saberia ser mãe, nunca saberia tomar conta de um corpo mais pequeno que o meu. E tenho muito medo do meu coração, esse órgão que tão estranhamente se mantém único, sem duplicação. Tenho medo do meu coração como órgão e como cova. Tomo os medicamentos certos para deixar de ter medo dele, de que um dia pare ou se descontrole num desses tantos atropelamentos que vou tendo
( a dor no corpo continua depois do choque). E sabes porquê, R.? O confronto do corpo com a morte de uma parte do seu coração é o mais duro de todos e requer impreparação.

Assim R.., um outro corpo na minha vida nunca significaria uma oportunidade, seria sempre um acidente, com as consequentes hospitalizações.

Sempre tua,

I.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Em nome do Corpo

 Não
 posso
ex-pli-car
 a
 importância
do
teu
 corpo
sem
te
 con-tar






- o teu corpo é o único lugar do mundo onde ninguém te toca, porque ninguém te sabe aí dentro (...)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Ode à estação de Entrecampos

Pessoas.
Pessoas que são pessoas, pessoas
que agarram pessoas, pessoas
que pisam pessoas, pessoas
que gritam com pessoas, pessoas
que tocam pessoas, pessoas
que cospem pessoas, pessoas
que cansam pessoas, pessoas
que olham pessoas, pessoas
que desejam pessoas, pessoas
que pensam em pessoas, pessoas
que amam pessoas, pessoas
que têm pessoas, pessoas
que não têm pessoas, pessoas
com ódio de pessoas, pessoas
que sabem ter pessoas, pessoas
que não sabem ter pessoas, pessoas
com raiva de pessoas, pessoas
com raiva de pessoas que têm pessoas, pessoas
sem raiva de pessoas que têm pessoas, pessoas
que dormem em pessoas, pessoas
que acordam pessoas, pessoas
que vomitam pessoas, pessoas
que limpam pessoas, pessoas
com pessoas na barriga, pessoas
sem pessoas na barriga, pessoas
que ajudam pessoas, pessoas
que levam pessoas, pessoas
que esperam pessoas, pessoas
que são pessoas. Pessoas. Pessoas. Pessoas.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Chelsea Hotel

Debaixo do meu corpo vive uma mulher.



Debaixo do meu corpo vive uma mulher magra de 35 kilos.

Debaixo do meu corpo encolhe-se entre os meus órgãos uma mulher de pernas pequenas que estreita magreza pelos braços até às mãos.

Debaixo do meu corpo vive uma mulher de meia idade, de olhos grandes e azuis de vazio,
sem sobrancelhas feitas de pêlos ou de desenhos a lápis.

Debaixo do meu corpo vive uma mulher sem seios
(dois altos de pele murcha à laia de figo mastigado)




sem sexo
(apenas uma curva de corpo ausente de pêlo ou fenda)




e sem mundo
ardente do cheiro das coisas
a morrer dentro da sua cabeça.


Debaixo do meu corpo vive uma mulher que não come, não bebe
e é amplamente calva na unidade que é a sua pele.

Debaixo do meu corpo vive uma mulher.
Gosto de chamar-lhe Lídia.





sábado, 3 de dezembro de 2011

O acesso ao meu corpo é feito por palavras

(para a minha tia Maria José com todo o meu amor)



As palavras têm cio. 
As palavras fazem cirúrgias de peito aberto mas não gostam de bisturis. As palavras não competem entre si porque se amam e gostam de se abraçar. As palavras gostam de amálgamas  e as mais abusivas pensam todos os dias em novas formas de violar a sintaxe das frases quando ninguém vê.
As palavras gostam da cabeça de David Mourão-Ferreira e da cabeça de Mia Couto. As palavras gostam da boca de Galeano e têm um amor profundo pela Srª Adília Lopes.
As palavras não atravessam a estrada fora da passadeira e não existe em qualquer parte do mundo uma única palavra preguiçosa.
As palavras gostam de crianças com menos de 5 anos: gostam de ser provadas, experimentadas, comidas docemente como só elas sabem fazer.
As palavras sabem que os acordos ortográficos lhes fazem mal à pele.
As palavras gostam de sonhos e de bocas bonitas com baton. As palavras gostam da palavra baton.
As palavras gostam de imigrantes e de emigrar.
As palavras gostam de moleskines e detestam SMS´s.
As palavras não gostam de erros, da mesma forma como não gostam de vírgulas ou de pontos finais. As palavras detestam abreviaturas e não levam a sério finais de frase. As palavras não gostam de fim ou fins. As palavras acham que os seus plurais são irmãs gémeas com mais uma perna.


As palavras gostam do amor.
As palavras têm vida eterna.

Adeus, Ophelia

  Querida Ophelia,  a tua morte foi a coisa mais difícil que vivi até hoje. Ter ficado contigo até ao último minuto dá-me um certo alento es...