terça-feira, 29 de novembro de 2011

Para a minha mãe



(para a minha mãe, que não gosta daquilo que eu escrevo )


Trocava os meus ossos pelos teus
mandava que me cortassem os músculos da boca
ou todos os dedos das mãos.

Trocava os meus ossos pelos teus
pelo cheiro da tua cama
eu tão pequena quando tu saías
e tudo a cheirar a ti
que eras perfume e mãe.

Trocava os meus ossos pelos teus
para poder ouvir vezes sem conta
o meu nome chamado por ti da janela de casa
(como se eu fosse importante e tu não pudesses perder-me)

Trocava as minhas rótulas pelas tuas
pelos teus castigos e pelo teu amor todo.

Trocava os meus ossos pelos teus
os meus joelhos estirados em sangue
para não ouvir os gemidos da tua dor
(ou os receios da tua morte a falarem alto na minha cabeça).

Trocava os meus ossos pelos teus
ou oferecia-te os meus olhos num prato
arrancados por dedos indicadores
cheios de amor.

Trocava as minhas rótulas pelas tuas
retiradas sem o carinho da anestesia local.


Trocava os meus ossos pelos teus
sem eira
nem beira
nem pé de figueira
para que possam  existir sempre orações bonitas
murmuradas por ti.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Do nó

Explicar que não sai, é um . Um . Não sai. Não desata. Não desafoga. Não permite descanso nem altercação. É um e prende.
Uma coisa com duas pontas que no meio de uma encruzilhada aperta. E aperta com peso. Aperta com peso e com dor. Acho que aperta e pesa ao mesmo tempo porque é demasiado para ser só uma das coisas
- pesa, cansa, dói

Pesa quilos e quilos. De dor. Na zona do peito, no sítio onde dizem que fica o              . Aqui.
No mesmo ponto, no mesmo lugar onde dizem que fica o

- nunca soube se o coração é um ponto ou um lugar

um ponto
ou
um lugar
no
corpo

os dois. Não sei.

Mas um lugar ou ponto a suportar quilos e quilos de . De um que não é pano, que é pedra. É um de pedra cá dentro.

Cá dentro. A arder.


sábado, 19 de novembro de 2011

O meu corpo é a minha companhia

O meu corpo é a minha companhia.

( a partir da obra da pintora Graça Martins)




O meu corpo é a minha companhia
do cheiro dos meus dedos
ao desenho do mundo,
curva silenciosa da minha sobrancelha.


O meu corpo é a minha companhia
das unhas pequenas às coxas empurradas
pela gordura da carne,
antigo refego de barriga.


O meu corpo é a minha companhia
dos pêlos das minhas pernas
até à boca do meu corpo
posicionada pela natureza do meu género entre as pernas
e cosida à nascença pela minha mãe.


O meu corpo é a minha companhia
quando o profano com outros corpos
e ele em silêncio se procura inteiro
na serenidade da frescura da manhã.


O meu corpo é a minha companhia
quando ao repousar o fogo me guia
e dessa certeza nasce poesia.

O meu corpo é a minha companhia
O meu corpo é a minha companhia.
Omeu corpo é a minha companhia.

Pintura de Graça Martins

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Cartas a S.

(carta nº 1, a última)



Afoguei o que restava das nossas memórias num balde água quente. A paciência de um afogamento individual,
quieto
 tranquilo
de memória a memória
(uma a uma,
dor a dor)


até ao alinhamento rigoroso de todos esses pequenos cadáveres retirados mortos do balde,
mortos
molhados
quentes
deitados em fila no chão da cozinha até à solenidade do seu enterro.

E estranhamente.


Tão estranhamente, toda a água que escaldava no balde e me ajudava a cada execução por afogamento, não terá sido suficiente para me queimar as mãos.
Não vejo queimaduras. Não restam marcas.




No fundo, é como se nunca tivesse acontecido.





sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Cartas a S.

(carta nº4)

É como num funeral pequeno. Um funeral intimista com uma pessoa
(viva)


vestida de preto e de margaridas frescas na mão.

E depois um caixão e uma morte pequena dentro dele
(são tantas as nossas mortes)

uma morte pequena
 deitada,
limpa,
vestida, 
desinfectada,
autopsiada, 
legalizada
e fria.

Esta morte faz questão da  presença da pessoa viva. Faz questão dessas mãos juntas,
do vestido preto
das margaridas húmidas nas pétalas e de um corpo vivo,
sereno,
plácido,
que lhe traga a serenidade que procura dentro do seu caixão envernizado.

Esta morte fez questão de todo o ritual, como uma mulher que aborta e quer para o seu nado-morto tudo o que o mundo lhe pode dar:
como se um dia tivesse vivido e amado.




E o luto foge-nos pelas pernas, no espaço que vai da campa à porta de casa.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Cartas a S.

(carta nº1946)

Há uma liberdade na escrita da qual nunca te falei. É um composto. Como se num frasco, o mundo inteiro repousasse.



Mas não vamos falar disso hoje.



O T. hoje faz anos. Ias gostar de nos ver. Vamos ter uma festa, balões, bolos, cores, miúdos da idade dele a correr. Ele não sabe. Pensa que é só na escola.
Vamos ter fotografias parvas. Como nós no nosso tempo. Quando deitados no escritório, no quarto.

No tempo em que tu tinhas uma asa
(não um braço)
uma asa
tu tinhas uma asa e eu era qualquer coisa que essa asa arrastava para si e chamava de seu.


Ontem.
Falávamos da tua nova pequena família e eu invejei-te. Veio-me da ponta dos dedos. Perdoa-me. Vou cortá-los. Vou cortá-los ao dez porque ando perdida e os meus dedos não sabem reconhecer pessoas, nem mapas, nem casas, nem estradas, nem florestas assassinas ou territórios sagrados.

Os meus dedos nunca perceberam nada.



Imagem: a partir da obra da artista plástica Alexandra Mesquita "Corações com mau feitio"

Adeus, Ophelia

  Querida Ophelia,  a tua morte foi a coisa mais difícil que vivi até hoje. Ter ficado contigo até ao último minuto dá-me um certo alento es...